Vice-Almirante das Forças Armadas Angolanas, Augusto Alfredo Lourenço é mais do que um estratega militar. É um guardião de memórias, contador de histórias e semeador de consciências. Incorporado nas Forças Armadas Populares de Libertação de Angola em 1981, moldou-se entre a pólvora da história e a tinta da imprensa.
Formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Mestre em Comunicação pela Universidade Católica de Brasília, Lourenço é também Auditor de Defesa Nacional pelo Instituto de Defesa Nacional de Lisboa, e frequentou os cursos de Comando e Direcção na Escola Superior de Guerra e de Liderança Moderna.
Entre 1982 e 1991, formou-se na Escola Político-Militar Comandante Jika. Foi Comissário Político da ODP no Chitado-Dundo, Adido Militar no Brasil, Director do Gabinete do Secretário de Estado da Indústria Militar, Director da Revista da Marinha de Guerra e docente em instituições como a UAN, CEFOJOR, ISIA e IMETRO. Actualmente, exerce o cargo de Comandante Adjunto da Marinha de Guerra Angolana para a Educação Patriótica.
Lourenço entende que a farda não cobre apenas o corpo, protege a alma da pátria. Acredita que os militares devem ser mais que combatentes, devem ser cidadãos conscientes, defensores de valores que resistem ao tempo e às balas.
Com uma escrita que une erudição, memória e crítica social, o autor de Guardiões da Pátria lança luz sobre um tema sensível e urgente: a formação moral e patriótica dos militares em diferentes contextos históricos e geográficos. A seguir, ele responde às principais questões sobre os bastidores da obra e sua visão sobre o papel das forças armadas no mundo contemporâneo.
O que o inspirou a escrever Guardiões da Pátria? Houve algum episódio pessoal ou histórico que serviu de ponto de partida?
O meu impulso inicial foi compreender como, ao longo da história, os militares foram formados não apenas como combatentes, mas como símbolos vivos de valores nacionais. Um ponto de partida marcante foi a análise do papel das forças armadas em momentos de ruptura — como revoluções, guerras de independência e transições políticas. Além disso, experiências pessoais e familiares com a cultura militar me despertaram para o peso simbólico que essa educação carrega, especialmente em países marcados por conflitos.
O título evoca heroísmo e responsabilidade. O senhor acredita que os militares têm hoje o mesmo papel simbólico de “guardiões” que tinham no passado?
O simbolismo se mantém, mas ressignificado. Se antes o militar era quase uma personificação da pátria, hoje essa imagem compete com outras formas de representação nacional. Ainda assim, o papel do militar como guardião dos valores e da integridade do Estado continua relevante — embora, num contexto democrático, precise estar sempre subordinado à soberania civil e ao respeito pelos direitos humanos.
Como foi o processo de pesquisa para esta obra? Houve fontes específicas ou testemunhos que o marcaram?
A pesquisa foi extensa e multidisciplinar. Consultei documentos históricos, manuais militares de diferentes épocas, relatos de guerra, discursos oficiais e autobiografias de figuras como Alexandre, o Grande, Júlio César, Sun Tzu, Anibal Barca, Carlos Magno, Napoleão Bonaparte etc. Os manuais de história da África também foram fundamentais para ter uma percepção do papel dos líderes militares africanos no desenvolvimento da arte da guerra, tais como Njinga Mbandi, Shaka Zulu e tantos outros, que se destacaram na luta contra a ocupação e dominação coloniais.
O que entende, na prática, por “educação moral e patriótica” dentro das forças armadas?
É o cultivo de valores como lealdade, disciplina, solidariedade e amor à pátria. Não é apenas doutrinação, mas uma construção identitária que molda o carácter do militar. Isso se faz por meio de rituais, símbolos, narrativas históricas e, sobretudo, pelo exemplo dos superiores. O ideal é formar um soldado que, diante de dilemas, saiba distinguir obediência cega de dever moral.
Muitos associam patriotismo a propaganda. Onde está o limite entre formar valores e manipular consciências?
Esse é um ponto delicado. O patriotismo genuíno é crítico, reflexivo e aberto ao diálogo. Já a propaganda busca adesão incondicional. O limite está na liberdade de pensamento: uma educação ética e patriótica deve inspirar, não impor; deve formar consciências, não moldá-las à força.
O senhor defende que essa educação seja exclusiva aos militares ou deveria também estar presente nas escolas civis?
Deve, sim, estar presente nas escolas civis. A educação moral e patriótica não deve ser monopólio das forças armadas. A cidadania exige conhecimento histórico, senso de comunidade e responsabilidade colectiva. Claro que os métodos devem ser distintos, respeitando os espaços e as vocações de cada instituição.
Como a formação militar evoluiu ao longo das décadas em Angola? O que melhorou e o que se perdeu?
A formação militar em Angola passou por uma transição importante: de um modelo voltado para a guerrilha e resistência, para um formato mais institucional e profissional. Ganhou-se em técnica, doutrina e inserção internacional. Mas há uma saudade legítima de certos valores de solidariedade e sacrifício colectivo que marcaram os anos de luta. O desafio é equilibrar modernização com a memória.
Acha que os conflitos e guerras que Angola viveu moldaram de forma única a educação dos seus militares?
Sem dúvida. A guerra molda não apenas a táctica, mas a ética do combatente. Em Angola, a luta pela independência e depois a guerra civil criaram uma geração de militares que viam o uniforme como símbolo de libertação e sobrevivência. Isso imprime uma marca singular na formação — uma relação muito íntima entre a identidade nacional e a vida militar.
Que figuras ou episódios históricos nacionais mais ilustram o espírito do livro?
Num ano em que Angola celebra 50 anos de independência é importante recordarmos figuras como Agostinho Neto e Nzinga Mbandi, que representaram a defesa da soberania e da dignidade nacional, são centrais. Episódios como a luta pela independência ou os acordos de paz também ilustram o espírito do livro — momentos em que os militares deixaram de ser apenas soldados e se tornaram actores da história.
Estamos a formar soldados obedientes ou cidadãos conscientes com farda?
O ideal é formar cidadãos conscientes com farda. A obediência é importante, claro, mas deve vir acompanhada de reflexão crítica. Um militar bem formado precisa saber distinguir ordens legítimas de abusos de autoridade. O futuro das forças armadas passa por essa capacidade de aliar disciplina com lucidez.
Como o senhor vê o papel do escritor num país em reconstrução moral e institucional?
O escritor tem o papel de provocar, iluminar zonas de sombra, questionar verdades absolutas. Num país em reconstrução, a palavra pode ser um instrumento de reconciliação e também de resistência. Escrever é um acto político, no melhor sentido da palavra: é participar da construção da memória e do imaginário colectivo.
Como gostaria que esta obra fosse lida: como um alerta, um manual, uma homenagem ou uma provocação?
Talvez com as quatro coisas ao mesmo tempo: Um alerta diante dos riscos e ameaças que pairam sobre a segurança e a estabilidade os estados e para os quais se deve estar preparados; um manual sobre a complexidade da formação militar num contexto de introdução de novos sistemas de armamentos e comando controlo; uma homenagem aos que serviram com honra e altruísmo a pátria e uma provocação para que repensemos o papel das forças armadas no mundo contemporâneo. Pois como escreveu a pesquisadora Margareth Macmillan, “A Guerra não é uma aberração que é melhor esquecer tão rapidamente quanto possível”. A guerra é um fenómeno social que estrutura profundamente a história da humanidade desde tempos remotos. Por isso, não devemos olvidar as palavras do General Cartaginês Anibal Barca: “Lembrai-vos da guerra”.
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